Fonte: Revista Marie Clair/
Edição: Adilson Gonçalves
As aparências enganam no caso das
gêmeas Yacy e Yara Sá.
Embora idênticas fisicamente, têm
personalidades bem distintas.
Yacy é desinibida, nutricionista
por formação e se emociona ao falar
da mãe; Yara é mais tímida, se dá
bem em exatas e é formada em
Ciência da Computação pela
Universidade Federal do Maranhão, a
mesma da irmã. “Crescemos com a
responsabilidade de ser a
geração da família a se formar na
faculdade”, explica Yara.
Filhas da agente penitenciária –
e costureira nas horas vagas –
Maria Santana, as duas nasceram em São Luís, capital do
estado.
A cerca de 200 quilômetros
dali fica Viana, cidade natal de Maria,
que abriga comunidades
quilombolas em sua extensão. “Nosso avô
materno era carroceiro e nossa
avó tinha a hortinha dela em casa, e
ajudava vendendo as verduras e os
legumes que plantava. Minha
mãe teve uma infância bem pobre.
Parte da área onde nasceu e se
criou é remanescente de
quilombos, por isso temos características
físicas tão fortes, como nossa
cor e feições”, conta Yacy.
Foi quando mudou-se para a
capital, já adulta e mãe de seu
primeiro filho, que Maria
conheceu o pai das meninas, um eletricista
industrial. Casaram-se e tiveram
três filhas: a irmã do meio, hoje
com 35 anos, e as gêmeas, de 33.
“Nosso pai não se fixava em São
Luís: viajava, quando uma empresa
o admitia, para o Pará, para
Recife, e assim foi rodando o
Brasil. Por um tempo, mandava
notícias e visitava a gente nas
férias, mas depois ficava mais de um
ano sem vir nos ver e não ajudava
financeiramente. Nossa mãe era
mãe e pai também, deu duro para
nos criar e dar tudo o que
tivemos”, lembra Yacy.
"Quando adolescentes, víamos as modelos nas revistas e não nos identificávamos. Não enxergávamos nossa beleza”"
Yara Sá
Na infância, a rotina da mãe que
trabalhava três dias da semana
como costureira, as influenciou a
gostar de moda. “Pra gente,
aquele era o momento de estar
perto dela, de fazer as coisas junto.
Crescemos folheando revistas,
aprendemos a cortar molde de
roupa, arrematar tecido, abrir
costura... Tudo para tornar o trabalho
dela um pouco menos cansativo.”
Daí a decidirem seguir a carreira,
porém, foram muitos anos e um
longo processo de autoaceitação.
“Quando adolescentes, a gente via
as modelos nas revistas e nos
comerciais e não se identificava.
Tinha aNaomi [Campbell], mas
ela tem aquele padrão europeu,
cabelo alisado. Não enxergávamos
beleza na gente. Por isso
seguimos o caminho mais seguro: estudar
muito, fazer faculdade, ter um
emprego formal”, explica Yara.
Em 2017, de tanto ouvirem das
pessoas que deveriam ser modelos
e de verem uma mudança na
indústria, Yacy conta que decidiram
investir na carreira e procurar
uma agência – depois dos 30, o que é
uma exceção muito bem-vinda no
mercado. “Começamos a
perceber que a moda e a beleza
estavam se diversificando e
pensamos: ‘será que agora vão
aceitar a gente?’. Nos últimos dez
anos, quando mais mulheres negras
passaram a ser protagonistas
nessa área, passamos a nos notar,
nos achar bonitas e até usar
nosso cabelo natural”, completa
Yara.
"Por sermos negras, tínhamos que mostrar nossa competência o tempo todo para não sermos humilhadas pelas pessoas”"
Yacy Sá
A partir daí, o processo evoluiu
como o da maioria das new faces:
foram para São Paulo, assinaram
contrato com uma agência,
voltaram para São Luís para
produzir material fotográfico enquanto
aguardavam trabalhos e mudaram-se
definitivamente para a capital
paulistana no segundo semestre de
2018. No fim do ano, um
presente para a mãe: estamparam o
primeiro editorial de moda para
uma revista, justamente aqui
na Marie Claire. “Nossa mãe ia toda
semana na banca perguntar se
tinha chegado a revista. Ela a
carregava na bolsa para cima e
para baixo, mostrava para todo
mundo e falava que eram as filhas
dela, cheia de orgulho”, conta
Yara. “A gente não tinha noção de
que ainda podia realizar esse
sonho, chegar aonde chegamos”,
diz Yacy.
“Na indústria da moda,
infelizmente, a beleza que se vende é a
beleza jovem. Tem gente que diz
que a carreira acabou pra gente,
que vamos ficar só nisso, que já
passou o momento de
‘acontecermos’ e, por isso, não
vamos muito longe. Já aconteceu
de ‘amigos’ que fizemos nesse
meio se afastarem quando
descobriram nossa idade. Parece
que criaram uma expectativa de
sermos top models internacionais
e poderem dizer que são nossos
amigos, mas se frustraram. Quem
leva isso numa boa são outras
modelos, nossas amigas”, diz
Yara. “Nossa aparência é
incompatível com a nossa idade, sabemos.
Tanto que, na agência,
ficaram surpresos com essa
questão, não sabem como lidar com
isso até hoje. Mas para sonhar
não tem idade. Você pode sonhar
enquanto viver, e viver para
tentar realizar”, completa Yacy.
“Nossa mãe sempre nos ensinou
que, por sermos negras, tínhamos
que mostrar nossa competência o
tempo todo. Tínhamos que
estudar e adquirir conhecimento
para não sermos humilhadas pelas
pessoas, nos provando a todo
momento. No serviço, ela costurava
as próprias roupas, sempre
impecáveis. Os amigos de trabalho a
chamavam de ‘nos trinques’,
porque ela sempre estava belíssima.
Ela conta que, na época, não
existia farda para agentes
penitenciários nem uniforme para
presidiários e, no Maranhão, a
maior parte da população carcerária
é de preto e pobre. Um dia,
quando foi escoltar uma detenta
num julgamento, o juiz, branco,
olhou e perguntou: ‘Quem é a
presa?’. Isso a marcou muito, ela
morria de medo de ser confundida
só por ser negra. Por isso
sempre orientou a nos vestirmos
bem, falarmos bem”, diz Yacy.
“A gente estudou em escola e
faculdade públicas, tivemos uma
infância pobre. Tentávamos de
todas as maneiras ajudar em casa,
economizando, trabalhando desde
cedo. Nossos avós maternos
criaram os filhos numa situação
de precariedade. Minha mãe conta
que, às vezes, não tinham o que
comer, só arroz com farinha.
Mesmo assim, nosso avô trabalhava
duro o ano inteiro para poder
comprar sapatos para os filhos no
final, ver ‘todos os pretos
calçadinhos’, como ele dizia.
Isso porque, na época da escravidão,
o que diferenciava o negro livre
do negro escravo era se tinham
sapato ou não, e aquilo era muito
forte para ela. Tanto que, na
nossa infância, a gente viu mamãe
comprar muitos sapatos,
tínhamos vários. Ela se
preocupava com isso e dizia: ‘As minhas
pretinhas estão calçadas, não são
pretas descalças’”, conta Yacy.
“Nós somos feministas. Passamos a
conhecer mais sobre o
movimento nos últimos cinco anos,
quando vimos que mulheres
negras estavam falando mais sobre
isso. A Djamila [Ribeiro] é
uma referência.
A Chimamanda [Ngozi Adichie]... Ela escreve tão
bem, fala de dores comuns a nós,
negros. Entendemos a
importância de buscar nossa
ancestralidade, ter respeito pelas
nossas origens, ser conscientes
da nossa cor. E a Michelle
Obama também. Mesmo não
sendo no Brasil, a gente ficou na
maior empolgação de ver uma
família negra na presidência. A
Michelle tem sabedoria,
elegância, beleza. A assistíamos e
pensávamos: ‘Nossa, é possível
ter tudo isso e ser negra?’. É
incrível enxergar, por elas, onde
podemos chegar. Na moda,
olhamos para Adut
Akech, Maria Borges, Jeneil Williams. Elas
são nossas inspirações”, diz
Yara.