terça-feira, 3 de setembro de 2019

YARA E YACY SÁ, IRMÃS GÊMEAS: DE ORIUNDAS DE UM QUILOMBO NO MARANHÃO, PARA A CAPA DE MARIE CLAIRE E O MUNDO


Fonte: Revista Marie Clair/
 Edição: Adilson Gonçalves

As aparências enganam no caso das gêmeas Yacy e Yara Sá.
Embora idênticas fisicamente, têm personalidades bem distintas.
Yacy é desinibida, nutricionista por formação e se emociona ao falar
da mãe; Yara é mais tímida, se dá bem em exatas e é formada em
Ciência da Computação pela Universidade Federal do Maranhão, a
mesma da irmã. “Crescemos com a responsabilidade de ser a
geração da família a se formar na faculdade”, explica Yara.
Filhas da agente penitenciária – e costureira nas horas vagas –
Maria Santana, as duas nasceram em São Luís, capital do estado.
A cerca de 200 quilômetros dali fica Viana, cidade natal de Maria,
que abriga comunidades quilombolas em sua extensão. “Nosso avô
materno era carroceiro e nossa avó tinha a hortinha dela em casa, e
ajudava vendendo as verduras e os legumes que plantava. Minha
mãe teve uma infância bem pobre. Parte da área onde nasceu e se
criou é remanescente de quilombos, por isso temos características
físicas tão fortes, como nossa cor e feições”, conta Yacy.
Foi quando mudou-se para a capital, já adulta e mãe de seu
primeiro filho, que Maria conheceu o pai das meninas, um eletricista
industrial. Casaram-se e tiveram três filhas: a irmã do meio, hoje
com 35 anos, e as gêmeas, de 33. “Nosso pai não se fixava em São
Luís: viajava, quando uma empresa o admitia, para o Pará, para
Recife, e assim foi rodando o Brasil. Por um tempo, mandava
notícias e visitava a gente nas férias, mas depois ficava mais de um
ano sem vir nos ver e não ajudava financeiramente. Nossa mãe era
mãe e pai também, deu duro para nos criar e dar tudo o que
tivemos”, lembra Yacy.
"Quando adolescentes, víamos as modelos nas revistas e não nos identificávamos. Não enxergávamos nossa beleza”"
Yara Sá
Na infância, a rotina da mãe que trabalhava três dias da semana
como costureira, as influenciou a gostar de moda. “Pra gente,
aquele era o momento de estar perto dela, de fazer as coisas junto.
Crescemos folheando revistas, aprendemos a cortar molde de
roupa, arrematar tecido, abrir costura... Tudo para tornar o trabalho
dela um pouco menos cansativo.” Daí a decidirem seguir a carreira,
porém, foram muitos anos e um longo processo de autoaceitação.
“Quando adolescentes, a gente via as modelos nas revistas e nos
comerciais e não se identificava. Tinha aNaomi [Campbell], mas
ela tem aquele padrão europeu, cabelo alisado. Não enxergávamos
beleza na gente. Por isso seguimos o caminho mais seguro: estudar
muito, fazer faculdade, ter um emprego formal”, explica Yara.
Em 2017, de tanto ouvirem das pessoas que deveriam ser modelos
e de verem uma mudança na indústria, Yacy conta que decidiram

investir na carreira e procurar uma agência – depois dos 30, o que é
uma exceção muito bem-vinda no mercado. “Começamos a
perceber que a moda e a beleza estavam se diversificando e
pensamos: ‘será que agora vão aceitar a gente?’. Nos últimos dez
anos, quando mais mulheres negras passaram a ser protagonistas
nessa área, passamos a nos notar, nos achar bonitas e até usar
nosso cabelo natural”, completa Yara.



"Por sermos negras, tínhamos que mostrar nossa competência o tempo todo para não sermos humilhadas pelas pessoas”"

Yacy Sá
A partir daí, o processo evoluiu como o da maioria das new faces:
foram para São Paulo, assinaram contrato com uma agência,
voltaram para São Luís para produzir material fotográfico enquanto
aguardavam trabalhos e mudaram-se definitivamente para a capital
paulistana no segundo semestre de 2018. No fim do ano, um
presente para a mãe: estamparam o primeiro editorial de moda para
uma revista, justamente aqui na Marie Claire. “Nossa mãe ia toda
semana na banca perguntar se tinha chegado a revista. Ela a
carregava na bolsa para cima e para baixo, mostrava para todo
mundo e falava que eram as filhas dela, cheia de orgulho”, conta
Yara. “A gente não tinha noção de que ainda podia realizar esse
sonho, chegar aonde chegamos”, diz Yacy.

Questão de idade

“Na indústria da moda, infelizmente, a beleza que se vende é a
beleza jovem. Tem gente que diz que a carreira acabou pra gente,
que vamos ficar só nisso, que já passou o momento de
‘acontecermos’ e, por isso, não vamos muito longe. Já aconteceu
de ‘amigos’ que fizemos nesse meio se afastarem quando
descobriram nossa idade. Parece que criaram uma expectativa de
sermos top models internacionais e poderem dizer que são nossos
amigos, mas se frustraram. Quem leva isso numa boa são outras
modelos, nossas amigas”, diz Yara. “Nossa aparência é
incompatível com a nossa idade, sabemos. Tanto que, na agência,
ficaram surpresos com essa questão, não sabem como lidar com
isso até hoje. Mas para sonhar não tem idade. Você pode sonhar
enquanto viver, e viver para tentar realizar”, completa Yacy.


Resistência materna

“Nossa mãe sempre nos ensinou que, por sermos negras, tínhamos
que mostrar nossa competência o tempo todo. Tínhamos que
estudar e adquirir conhecimento para não sermos humilhadas pelas

pessoas, nos provando a todo momento. No serviço, ela costurava
as próprias roupas, sempre impecáveis. Os amigos de trabalho a
chamavam de ‘nos trinques’, porque ela sempre estava belíssima.
Ela conta que, na época, não existia farda para agentes
penitenciários nem uniforme para presidiários e, no Maranhão, a
maior parte da população carcerária é de preto e pobre. Um dia,
quando foi escoltar uma detenta num julgamento, o juiz, branco,
olhou e perguntou: ‘Quem é a presa?’. Isso a marcou muito, ela
morria de medo de ser confundida só por ser negra. Por isso
sempre orientou a nos vestirmos bem, falarmos bem”, diz Yacy.

"Pretinhas calçadas"

“A gente estudou em escola e faculdade públicas, tivemos uma
infância pobre. Tentávamos de todas as maneiras ajudar em casa,
economizando, trabalhando desde cedo. Nossos avós maternos
criaram os filhos numa situação de precariedade. Minha mãe conta
que, às vezes, não tinham o que comer, só arroz com farinha.
Mesmo assim, nosso avô trabalhava duro o ano inteiro para poder
comprar sapatos para os filhos no final, ver ‘todos os pretos
calçadinhos’, como ele dizia. Isso porque, na época da escravidão,
o que diferenciava o negro livre do negro escravo era se tinham
sapato ou não, e aquilo era muito forte para ela. Tanto que, na
nossa infância, a gente viu mamãe comprar muitos sapatos,
tínhamos vários. Ela se preocupava com isso e dizia: ‘As minhas
pretinhas estão calçadas, não são pretas descalças’”, conta Yacy.

Sobre representatividade

“Nós somos feministas. Passamos a conhecer mais sobre o
movimento nos últimos cinco anos, quando vimos que mulheres
negras estavam falando mais sobre isso. A Djamila [Ribeiro] é
uma referência. A Chimamanda [Ngozi Adichie]... Ela escreve tão
bem, fala de dores comuns a nós, negros. Entendemos a
importância de buscar nossa ancestralidade, ter respeito pelas
nossas origens, ser conscientes da nossa cor. E a Michelle
Obama também. Mesmo não sendo no Brasil, a gente ficou na
maior empolgação de ver uma família negra na presidência. A
Michelle tem sabedoria, elegância, beleza. A assistíamos e
pensávamos: ‘Nossa, é possível ter tudo isso e ser negra?’. É
incrível enxergar, por elas, onde podemos chegar. Na moda,

olhamos para Adut Akech, Maria Borges, Jeneil Williams. Elas

são nossas inspirações”, diz Yara.

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